Documentos revelam bastidores inéditos da crise que culminou na invasão de 8 de janeiro

Despachos, informes de operações e ofícios mostram falhas de segurança e leniência militar com golpistas no DF

Por Caio de Freitas Paes, em Agência Pública

Pouco antes do atentado a bomba em Brasília (DF), na véspera do Natal de 2022, a Superintendência da Polícia Federal (PF) no Distrito Federal já defendia um posicionamento firme quanto aos acampados em frente ao Quartel-General (QG) do Exército – onde o ato terrorista foi, afinal, planejado. “A dissolução do agrupamento humano em frente aos Quartéis Generais é medida imperiosa” para evitar problemas, “bem como para garantia da ordem pública, ainda mais em razão do evento da posse [do presidente Lula] que se avizinha”, é o que se lê em um despacho da PF emitido em 21 de dezembro, dois dias antes do atentado, obtido pela Agência Pública. O acampamento não foi desfeito conforme defendido pela PF e, na prática, dele partiram milhares de bolsonaristas que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro.

Semanas depois do despacho da PF, se confirmou que a mensagem da corporação não chegou ao Comando Militar do Planalto (CMP) e à Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF). O motivo? Não era “atribuição” da PF, segundo revela outro documento obtido pela reportagem, expedido em 16 de janeiro passado – uma semana depois da invasão dos Três Poderes.

Nesse segundo despacho, o delegado na superintendência do DF, Daniel Carvalho Brasil Nascimento, argumenta que a PF “não tem atribuição para expedir Ofício ao Comando do EB [Exército Brasileiro] e/ou ao Comando da Polícia Militar para que as respectivas instituições cumpram seus deveres constitucionais” – no caso, a “dissolução” do acampamento golpista.

Nesse mesmo documento, o delegado explica também que o CMP e a PM-DF não foram oficialmente comunicados sobre a avaliação da PF “por se tratar de fato notório e de conhecimento amplo de todas as instituições públicas que o agrupamento humano estacionado em área militar federal de responsabilidade do Exército Brasileiro representava risco à Ordem Pública”.

A PM, por outro lado, garantia que havia feito sua parte para o desmonte do acampamento, planejando uma operação de retirada de ambulantes, barracas e energia elétrica do local. Tal posição foi comunicada em 29 de dezembro, dois dias antes da posse, quando o ex-comandante geral da PM-DF Fábio Augusto Vieira disse: “Tínhamos 500 policiais militares em condições, e o Exército desistiu da operação”.

“A despeito de todo o esforço e do aparato mobilizado pela Polícia Militar do Distrito Federal, face à demanda apresentada e ao apoio operacional solicitado pelo Exército Brasileiro, a referida Força, na ocasião, decidiu pela não realização da operação, possibilitando a permanência, continuidade e funcionamento do acampamento”, de acordo com um outro relatório da PM-DF sobre sua atuação no caso.

O material foi destinado à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) no DF, braço do Ministério Público Federal (MPF) responsável pela defesa dos direitos constitucionais da população, que havia aberto uma apuração “para acompanhar manifestações políticas em face do resultado das eleições para Presidente da República e apurar eventuais atos antidemocráticos”.

Todos os documentos foram expedidos entre 4 de novembro de 2022 e 14 de fevereiro passado, mesmo período da ascensão do golpismo após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas.

À Pública, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que, de acordo com o Comando Militar do Planalto, “não houve qualquer pedido oficial para desmobilização do acampamento” entre o início de novembro e o dia 8 de janeiro.

Monitoramento ineficaz e falta de coordenação

Os documentos revelam ainda o descompasso entre militares, forças de segurança distritais e a PF no fim do governo Bolsonaro para tratar da crise dos acampamentos – mesmo sendo constantemente cobrados por órgãos de controle.

A falta de coordenação ficou escancarada a partir da atuação desses órgãos em meio aos violentos protestos realizados após a prisão do falso cacique Xavante, em 12 de dezembro, e ao atentado a bomba no aeroporto de Brasília, na véspera de Natal.

Em 14 de dezembro, representantes da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e do Comando da PM-DF, além do CMP, reuniram-se na sede da Procuradoria da República no Distrito Federal.

Na ocasião, relataram que “o acampamento dos manifestantes contrários ao resultado do pleito eleitoral” estava sendo “constantemente monitorado, inclusive para averiguação de possíveis atos criminosos atribuídos aos manifestantes e a pessoas que transitam no local”.

Ainda segundo o relato dessa reunião, o monitoramento era feito por órgãos de inteligência da SSP e da PM-DF, além de agentes da PF. Não há menção, porém, a atividades de inteligência por parte do CMP.

O encontro do dia 14 ocorreu dois dias depois do quebra-quebra bolsonarista após a prisão do pastor indígena José Acácio Serere Xavante, com queima de ônibus circulares e tentativa de invasão da sede da PF.

Segundo as autoridades da SSP-DF, da PM-DF e do CMP presentes na reunião, a notícia da prisão de Serere pela PF “chegou às forças de segurança do Distrito Federal com atraso”, o que, ainda de acordo com eles, “inviabilizou a adoção de medidas mais eficazes para a prevenção/contenção dos prováveis conflitos que dela adviriam”.

Não à toa, em 19 de dezembro, dias antes do ato terrorista arquitetado em frente ao QG do Exército, a PRDC recomendou aos órgãos de segurança que monitorassem – juntos e continuamente – “pontos de tensão que envolvam manifestantes políticos”.

A procuradoria ligada ao MPF pedia também a criação de um “canal direto de troca de informações, inclusive de inteligência”, para “antecipar riscos” e “evitar possíveis conflitos”. Segundo o material obtido pela Pública, os órgãos citados garantiram que havia constante troca de informações de inteligência, sem especificar quantos informes e relatórios haviam circulado entre eles nem quais as providências tomadas com base em tais informações.

Militares insistiram no “livre exercício de manifestações pacíficas” mesmo após violência no DF

Em 22 de dezembro, dois dias antes do atentado a bomba em Brasília, o então comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, tentou pôr panos quentes na crise. O general disse, por meio de ofício, que os militares mantinham constante “interlocução” com os acampados na frente do QG do Exército, “a fim de garantir o livre exercício de manifestações pacíficas”.

A posição do general não surpreende, pois o CMP foi o responsável por dar guarida para bolsonaristas em Brasília logo após o segundo turno das eleições. Em 4 de novembro, foi esse mesmo comando militar que autorizou, pela primeira vez, a entrada de um carro de som para embalar as manifestações golpistas em frente ao QG do Exército.

A órgãos de controle, o CMP havia dito que essa autorização referia-se “exclusivamente” àquela data, mas, quase duas semanas depois, Dutra simplesmente informou que “foi delimitada uma área dentro do Setor Militar Urbano (SMU) destinada como estacionamento e outra como área de acampamento” para os bolsonaristas – que pediam um golpe de Estado com intervenção militar, contestando a vitória de Lula.

“No que tange a supostas autorizações para protestos políticos, informo que não houve qualquer demanda ou providência nesse sentido”, disse o comandante militar do Planalto – ignorando, na prática, o caráter político mais que explícito do acampamento golpista.

À Pública, o Comando Militar do Planalto afirmou que o “acampamento já estava sendo desmobilizado desde dezembro e, principalmente, a partir do dia 2 de janeiro”. Já em relação ao fracassado atentado a bomba em Brasília, os militares disseram que, “até o presente momento, nada comprova que o explosivo foi repassado [aos terroristas] no SMU”.

Para a PF, Bolsonaro causou “acirramento dos ânimos” no acampamento

Diferentemente do que sugerem ofícios dos militares, a situação no acampamento não era pacífica pelo menos desde o fim de novembro.

Segundo a PF, “o acirramento dos ânimos” já havia sido identificado no acampamento em 28 de novembro, com a chegada de um grupo de indígenas bolsonaristas, “acrescido do pronunciamento do atual Presidente da República” em 9 de dezembro. Foi quando Bolsonaro rompeu seu silêncio desde a derrota eleitoral ao dizer a seus apoiadores: “Nada está perdido”.

O despacho da PF assinado dois dias antes do atentado a bomba revela também que a corporação não conseguia mais monitorar plenamente o acampamento golpista na frente do QG do Exército.

“Com o incremento da hostilidade com as forças de segurança pública, em especial para com a Polícia Federal, acrescido do perfil violento apresentado no dia 12/12 [prisão de Serere Xavante]”, disse a PF, “o monitoramento aproximado [infiltrado] restou prejudicado”.

Mesmo assim, após a invasão dos Três Poderes, a corporação relata que “dispunha de informações [de inteligência] disponíveis em fontes abertas de redes sociais que indicavam a possibilidade de manifestação no dia 07 até 09 de janeiro”. A Pública revelou, inclusive, o uso do código “festa da Selma” pelos bolsonaristas nas redes sociais para coordenarem a invasão e a depredação do dia 8 de janeiro.

Por conta da iminência de protestos violentos em Brasília, o efetivo da PF no Distrito Federal “ficou empregado ininterruptamente do dia 07 até 09 juntamente com outras unidades de inteligência desta Polícia Federal”, o que incluía a Diretoria de Inteligência Policial (DIP) e o Comando de Operações Táticas (COT).A corporação defendeu também que sua “ação preventiva resultou na pronta identificação de parte dos criminosos, bem como, por exemplo, na prisão de uma das líderes da organização criminosa que se encontrava foragida na cidade de Luziânia”, em Goiás – uma referência à prisão da bolsonarista Ana Priscila Azevedo no dia 10 de janeiro, pelo seu envolvimento na invasão dos Três Poderes.

General Gustavo Henrique Dutra de Menezes estava à frente do Comando Militar do Planalto (CMP) à época dos ataques de 8 de janeiro (Exército Brasileiro)

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